sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Um poema de Carlos Drummond de Andrade para o eleitor de Belo Horizonte

Não sou eleitor em BH. Voto em minha terra e lembrei-me da poesia de Drummond para homenagear, eleitor de BH, você que domingo vai decidir o futuro desta cidade
Por que não vais a Belo Horizonte? a saudade ciciae continua, branda: Volta lá.Tudo é belo e cantante na coleção de perfumesdas avenidas que levam ao amor, nos espelhos de luz e penumbra onde se projetamos puros jogos de viver. Anda! Volta lá, volta já. E eu respondo, carrancudo: Não. Não voltarei para ver o que não merece ser visto, o que merece ser esquecido, se revogado não pode ser. Não o passado cor-de-cores fantásticas, Belo Horizonte sorrindo púbere núbil sensual sem malícia, lugar de ler os clássicos e amar as artes novas, lugar muito especial pela graça do climae pelo gosto, que não tem preço, de falar mal do Governo no lendário Bar do Ponto. Cidade aberta aos estudantes do mundo inteiro, inclusive Alagoas, "maravilha de milhares de brilhos vidrilhos"mariodeandrademente celebrada. Não, Mário, Belo Horizonte não era uma tolice como as outras. Era uma provinciana saudável, de carnes leves pesseguíneas. Era um remanso, era um remansopara fugir às partes agitadas do Brasil, sorrindo do Rio de Janeiro e de São Paulo: tão prafrentex, as duas! e nós lá: macio-amesendadosna calma e na verde brisa irônica... Esquecer, quero esquecer é a brutal Belo Horizonteque se empavona sobre o corpo crucificado da primeira. (Quero não saber da traição de seus santos. Eles a protegiam, agora protegem-se a si mesmos. São José, no centro mesmo da cidade, explora estacionamento de automóveis. São José dendroclasta não deixa de pé sequer um pé-de-pauonde amarrar o burrinho numa parada no caminho do Egito. São José vai entrar feio no comércio de imóveis, vendendo seus jardins reservados a Deus. São Pedro instala supermercado. Nossa Senhora das Dores, amizade da gente na Floresta, (vi crescer sua igreja à sombra do Padre Artur) abre caderneta de poupança, lojas de acessórios para carros, papelaria, aviário, pães-de-queijo). Terão endoidecido esses meus santose a dolorida mãe de Deus? Ou foi em nome deles que pastoresdeixam de pastorear para faturar? Não escutem a voz de Jeremias(e é o Senhor que fala por sua boca de vergasta): "Eu vos introduzi numa terra fértil, e depois de lá entrardes a profanastes. Ai dos pastores que perdem e despedaçamo rebanho da minha pastagem! Eis que os visitarei para castigar a esperteza de seus desígnios".Fujoda ignóbil visão de tendas obstruindo as alamedas do Senhor. Tento fugir da própria cidade, reconfortar-meem seu austero píncaro serrano. De lá verei uma longínqua, purificada Belo Horizontesem escutar o rumor dos negócios abafando a litania dos fieis. Lá o imenso azul desenha ainda as mensagensde esperança nos homens pacificados - os doces mineirosque teimam em existir no caos e no tráfico. Em vão tento a escalada. Cassetetes e revólveres me barrama subida que era alegria dominical de minha gente. Proibido escalar. Proibido sentiro ar de liberdade destes cimos, proibido viver a selvagem intimidade destas pedrasque se vão desfazendo em forma de dinheiro. Esta serra tem dono. Não mais a naturezaa governa. Desfaz-se, com o minério, uma antiga aliança, um rito da cidade. Desiste ou leva bala. Encurralados todos, a Serra do Curral, os moradorescá embaixo. Jeremias me avisa: "Foi assolada toda a serra; de improvisoderrubaram minhas tendas, abateram meus pavilhões. Vi os montes, e eis que tremiam. E todos os outeiros estremeciam. Olhei terra, e eis que estava vazia, sem nada nada nada".Sossega minha saudade. Não me cicies outra vezo impróprio convite. Não quero mais, não quero ver-te, meu Triste Horizonte e destroçado amor.

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