PAÍS DO DEBOCHE
* Murilo Badaró – Presidente da Academia Mineira de Letras
No ano de 1993, o então governador da Paraíba, Ronaldo Cunha Lima, tentou contra a vida de Tarcísio Burity, ex-governador de seu Estado, disparando contra ele três tiros. As seqüelas o mataram dez anos depois. O governador, quase assassino, teve a licença negada para quer fosse iniciado o processo penal, que somente teve curso após sua saída do governo e eleição para o Senado Federal, já aí no Supremo Tribunal Federal por força do privilégio de foro. Decorridos quatorze anos do crime, à véspera do seu julgamento, o deputado Ronaldo Cunha Lima renuncia o mandato, impedindo o veredicto final da Corte Suprema por força da volta dos autos à justiça comum da Paraíba. O episódio mostra esta constante na vida do Brasil, um país do deboche. Como classificar toda esta história senão como deboche, escárnio ou qual adjetivo mais pejorativo encontrar no dicionário para carimbá-la. Evitando o andamento do processo pelo emaranhado de dispositivos em nosso Código de Processo Penal, feito para manter este glorioso campeonato de impunidade que dá ao Brasil mais um de seus títulos de desonra, procrastinou durante quatorze anos através de incidentes processuais, assentados sobre a inexplicável e inextirpável morosidade da Justiça brasileira. Seu julgamento tinha data marcada para acontecer e dele era relator o Ministro Joaquim Barbosa, ganhador de justa notoriedade pelo seu desassombro com que relatou o processo contra a quadrilha do “mensalão”. Havia no ar cheiro de condenação. Valendo-se de um direito assegurado em lei, o deputado Ronaldo Cunha Lima renuncia seu mandato com a cínica justificativa de que desejava ser julgado por “seus iguais” paraibanos. Um deboche e um escárnio, como o Ministro Barbosa classificou o gesto despudorado do conterrâneo de José Lins do Rêgo. Para completar sua irresignação, o Ministro Joaquim Barbosa deveria também ter colocado com ferro em brasa na face da Justiça, para marcá-la com a denúncia contra esta recorrente e indefinida morosidade que só favorece os delinqüentes. A legitimidade de seu desabafo ficou comprometida pelos 14 anos de espera da decisão, em autos que jaziam imexidos nos desvãos das prateleiras do Tribunal. Para dar maior graça a este ar de deboche nas coisas do Brasil, senadores e deputados, poucos é verdade, saudaram o gesto do ex-governador da Paraíba como atitude de nobreza moral. Por sorte, a grande maioria dos componentes do Congresso Nacional preferiu mergulhar-se no silêncio profundo pela vergonha do labéu que lhe foi lançando ao rosto. De todo este triste episódio, é possível retirar algumas conclusões preocupantes. O povo brasileiro está anestesiado. Com sua capacidade de indignação amortecida. Alguns jornalistas, caracterizados pela coragem, trataram do assunto com palavras justas e adequadas, como se fossem clamantes num deserto de conveniências de toda natureza que predomina nos negócios públicos e privados deste imenso país. É o caso de se perguntar aos ministros do nosso Supremo Tribunal. Como ultimamente, tem sido norma da Suprema Corte absorver poderes até então da competência do Congresso Nacional, legislando para socorrer a sociedade com leis que a inação do legislativo não consegue produzir, porque não, por decisões e julgados terminativos, com o timbre de súmula vinculante, reagir contra o escárnio de que foi vítima fixando regras específicas para evitar casos tão vergonhosos como este? Vamos mergulhar no formalismo jurídico, será a resposta, que é útil num país sério, mas prejudicial num com esta enorme disposição para o deboche. Norberto Bobbio, nos seus escritos autobiográficos, tem uma lição inolvidável sobre as relações entre Direito e Poder, para ele, duas faces da mesma moeda, ambas imprescindíveis à sociedade. “Onde o direito é impotente, a sociedade corre o risco de precipitar-se na anarquia; onde o poder não é controlado, corre o risco oposto, do despotismo”. Do desequilíbrio entre os dois na atualidade brasileira, decorre este estado de frouxidão moral em que está mergulhado o país.
domingo, 4 de novembro de 2007
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