domingo, 27 de dezembro de 2009

Senha para amar em tempo de Natal IV

Época de Natal, falemos de amor. Anacleto era funcionário público no interior de Minas. Temperamento alegre e extrovertido, mas pirracento quando se tratava de política, pensava como o personagem de Machado de Assis que a "vida é uma ópera bufa com intervalos de música séria". Levava a maioria das situações na troça e fazia delas motivo para rir a bandeiras despregadas quando ele mesmo relatava a maioria dos casos em que se envolveu. Casou-se com Emerenciana, uma bonita professora da cidade, donzela recatada, portadora de virtudes e candidez das matronas do conservador mundo interior das Minas Gerais.

Senha para amar em tempo de Natal III

Nos primeiros anos o casamento transcorreu sem maiores incidentes, não obstante Meré – assim Emerenciana era chamada na intimidade – adverti-lo quanto aos desvios de conduta, prevenindo-o dos riscos em que incorreria e do inconveniente desconforto a que seria submetida pelo palavrório da vizinhança e das colegas da escola onde lecionava. O temperamento costuma ser uma cruz que cada um carrega. Umas mais leves, outras mais pesadas. A cruz de Anacleto era mista, conquanto a suportasse somente em assuntos leves. Melhor dizendo, levianos. Não resistiu aos encantos de Joana, empregada que servia em sua residência, e dos primeiros e distraídos esbarrões para sentir a turgidez de seus seios passou aos discretos beliscões até a bem urdida situação para o ato final da sedução.

Senha para amar em tempo de Natal III

Teve êxito nas primeiras aventuras até o dia em que Meré, terminadas as aulas mais cedo do que o habitual, regressa a casa e o apanha em plena libidinagem com a serviçal. Cada leitor será capaz de imaginar o que aconteceu no instante do flagrante e o sucedido após. A rigorosa Emerenciana puniu o transgressor com infindáveis períodos de silêncio e abstinência sexual, jamais permitindo pudesse ele tocá-la ou sequer dirigir-lhe a palavra. Em estado de total beligerância decidiu separar seu gineceu para evitar qualquer contato com o mandrião, instalando um tapume que a protegia do perigo de contatos mais íntimos se tangidos ambos pela irrefreável força da natureza. Ocorre que o amor tem segredos irrevelados. É uma espécie de divindade a quem todos gostariam de prestar permanente reverência, às vezes contentamento descontente, não raro ferida que dói sem doer, enfim, sentimento poderoso capaz de realizar os mais prodigiosos milagres.

Senha para amar em tempo de Natal IV

E tanto para Anacleto quanto para Emerenciana o reduzido universo interiorano lhes não permitia incursões heterodoxas. A ela, em especial. Ambos foram, pouco a pouco, sendo vencidos por Afrodite, mesmo afastados pela inconformidade e inflexível resistência de Meré ao ato desassisado do marido. Nosso herói cansado das noites indormidas pela lembrança do corpo jovem e esbelto da esposa a balouçar em seus pensamentos e agitar sua mente, resolve apanhar seu chinelo, atirando-o por sobre o tapume ao leito de Meré. Deu-se o milagre. Emerenciana apanha o seu e o lança em direção contrária. Foi a senha ansiosamente esperada para o reencontro, vivido na sofreguidão dos beijos e dos abraços saudosos. Continuaram não se falando. Muitas vezes depois os dois chinelos, a senha para amar, cruzaram no ar.

domingo, 20 de dezembro de 2009

A resposta da noiva - crônica a destempo I

O fato aconteceu pelos idos de 1960. Sua narração não penetra no amplo terreno da ficção ou da fantasia. Nos dias de hoje é improvável ocorra algo semelhante. Salvo se ainda existe alguma comunidade do tipo isolamento, refratária aos impulsos da modernidade que a tudo invade e, não raro, corrompe. A personagem dessa história é Margarida, uma moça tão bela quanto rebelde aos disciplinados padrões morais da pequena cidade em que vivia. Era filha de seu Euzébio, abastado fazendeiro. Para seu pai estavam vigentes os rigorosos códigos ancestrais de reparação, enquanto nossa heroína folgazava-se livremente com os rapazes de sua idade, mantendo disciplinado cuidado a fim de que, nem por sonho, chegasse até ele notícia de que houvera perdido a virgindade nos descontraídos derriços a que se entregava com desmedida libido. Nela justapunham-se beleza, coqueteria e insaciável apetite sexual, disputado com ardência pelos mancebos de sua idade. Um dia a casa caiu e pressionada pelo pai iracundo aponta Cláudio como principal autor do seu desvirginamento.

A resposta da noiva II

. O jovem indigitado, por sua vez, era filho de outro figurão da cidade, com vínculos políticos aos mandões do Estado e do município e igualmente possuidor de polpudas contas bancárias. Tal como seu Euzébio, o pai de Cláudio obedecia com rigor os mesmos códigos morais, pelo que reagiu mal-humorado à idéia do casamento proposto por aquele que deveria ser consogro. Entendia, e não sem certa razão, que seu filho não deveria esposar uma moça mal falada na cidade, cuja reentrâncias e intimidades já haviam sido freqüentadas por quase toda a rapaziada. Impossível admitir tal violação àquelas regras vigentes há tantos anos em sua família e na sociedade em que vivia. A ordem era resistir. Mas resistir como, se o pai de Margarida havia se entrincheirado na decisão de que Cláudio deveria reparar o mal feito, ou então passar pela punição reservada aos violadores do rigoroso código de honra familiar. Trocado em linguagem menos figurada, queria dizer, ou casa ou morre

A resposta da noiva III

O pai de Cláudio, de nome Anacleto, começou a dar tratos à bola a fim de encontrar uma saída para a involuntária enrascadela em que se meteu o filho. Cláudio lhe garantira que não fora o primeiro. Outros, antes dele, haviam percorrido os mesmos caminhos do prazer com a bela Margarida, que nem um pouco se pejava dos cochichos e mexericos de quarentonas despeitadas e invejosas. O esperto Anacleto resolveu procurar a moça, usando habilidoso estratagema de uma viagem a Belo Horizonte para as compras do enxoval e a oferta de recursos financeiros abundantes. Lograria convencê-la de que era mais conveniente obter um bom regalo em dinheiro a um casamento sem futuro. Margarida cedeu aos acenos da farta pecúnia, aceitando participar da impostura das bodas transferidas para Belo Horizonte. Seu pai desconhecia a cuidadosa e ardilosa conjura. No preciso momento em que o celebrante pergunta se aceitava Cláudio como seu legítimo esposo, um sonoro e retumbante "não" reboou pela nave da igreja. Atônito e perplexo, o severo pai de Margarida sequer reagiu. Apalpou o coldre. Estava vazio.

domingo, 13 de dezembro de 2009

A rinocerontização do Brasil I

O título da crônica de hoje foi extraído da famosa peça de Eugène Ionesco, escritor romeno de notoriedade e fama por haver dado formas definitivas ao que se convencionou denominar "teatro do absurdo", em razão dos enredos para teatro por ele escritos e representados em todo o mundo. Foi todavia com a peça "Rinocerontes" haver Ionesco ganhado prestígio internacional que o conduziu à Academia Francesa e deu-lhe o título de "pai do teatro do absurdo". Na peça "Os rinocerontes" Ionesco descreve as cenas em uma pequena cidade aonde os habitantes vão, paulatinamente, sendo transformados em rinocerontes. O rinoceronte é o símbolo da conformidade. O personagem principal do drama cada vez mais se distancia de seus concidadãos pela luta desenvolvida contra o conformismo dos moradores, cuja passividade os conduz ao absurdo de considerarem os rinocerontes belos animais.

A rinocerontização do Brasil II

. E a natureza não os premiou com atributos de beleza. É uma crítica genial contra o estado de rinocerontização em que estão envolvidas muitas sociedades modernas, povoada de rinocerontes representados pela adesão consciente ou inconsciente à permuta do belo pelo feio, do culto pelo inculto, do lícito pelo ilícito, do justo pelo injusto, do moral pelo imoral, do correto pelo incorreto, enfim, a distorção a todos envolvendo a ponto de não ser mais possível ou até mesmo razoável a reação. Cada leitor encontrará em seu pequeno mundo crescente volume de rinocerontes expostos no dia-a-dia nas manchetes jornalísticas da corrupção no setor público, no aumento das tarifas e dos impostos, na constante ameaça figurada na lesão de seus direitos pelas concessionárias de serviços. Outros tantos rinocerontes passeiam pelas ruas à vista de todos, merecendo exclamações como aquelas da peça teatral do autor romeno: "Olhe os rinocerontes; veja como são belos".

A rinocerontização do Brasil III

". São a passividade e o conformismo sublimados a estágio de completo domínio das mentes e dos corações. Quando os habitantes da cidade ficcional de Ionesco já não têm forças mentais e morais para a reação e o confronto, o único morador resistente ao processo de contaminação pela resignação invencível torna-se personagem estranho ao ambiente local. É conduzido ao desespero e à exasperação, estado de alma ambos destituídos de forças para modificar as coisas. Com certeza cada qual já percebeu a rinocerontização do governo, em seus três estágios, transferindo à população os ônus de seu fracasso gerencial, oculto debaixo das potentes luzes da publicidade governamental, capaz de pela técnica transformar palavras ocas e vazias em realizações nunca vistas. A banalização da violência nas cidades, também estendida aos campos, torna-se repetitiva a ponto de se transformar também em enorme rinoceronte. A reação contra ela não passa do discurso de intenções proferido em arrepio aos cânones da língua, cuja agressão praticada por autoridades e quejandos é outro animal repugnante, cuja disformidade já adquiriu tonalidades de esteticamente suportável. Agora aparece o escândalo de Brasília.

A rinocerontização do Brasil IV

. O Brasil está se transformando num enorme rinoceronte. Todo início de ano a sociedade recebe insuportável carga de aumento de taxas e impostos de natureza variada, aceita com a naturalidade de pessoas totalmente conformadas e sem capacidade de reação. É algo semelhante ao crescente processo de rinocerontização, esgotando as reservas e as forças capazes de modificarem esse estado de coisas. Deixo a especulação solta a cada leitor para identificar quantos rinocerontes estão ao seu derredor. Com eles você tromba a cada passo, a cada novo dia, empecendo sua capacidade de reação e fazendo supor aos governos que a sociedade vive no melhor dos mundos, quando, em verdade, o fio invisível que conduz os acontecimentos em seus subterrâneos está a cada dia mais esgarçado e a ponto de rompimento. Será possível reagir contra esta mesmice que a aprisiona? O tempo é senhor da resposta.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Brasil: um país que envelhece . Você sabia?

O Brasil tem hoje cerca de 21 milhões de pessoas com mais de 60 anos. Nos últimos dez anos, a proporção de idosos passou de 8,8% para 11,1% do total da população.
Em carta aos idosos, o Papa João Paulo II considerou a longevidade uma graça de Deus. Está coberto de razão e tanto mais feliz é a longevidade quando você acredita que pode mover o mundo com sua vontade.
O mais curioso é a população idosa, daqui a alguns anos, superará a de jovens dos 15 aos 29 anos.
Se tudo isto é muito bonito, com elke vem uma esteira de problemas, especialemente a questão previdenciária que é pouco levada a sério pelsos governos.
Nada mais bonito do que uma velhice digna e honrada.

A farsa do financiamento público nas eleições I

Seria como entronizar a imagem de São Jorge num bordel. Assim reagiu indignado um compadre meu do interior, traumatizado ante a recorrente proposta de Lula de gastar-se mais dinheiro público, arrancado da população em regime tributário escorchante, para compor falso quadro de pureza eleitoral, quando ele já está totalmente tisnado pela mais recorrente e deslavada corrupção. Quem repõe o tema em debate é o presidente da República, falando coisas depois de aprisionado em contradições para se livrar de declarações inoportunas sobre os episódios de Brasília. Homem atento a tudo o que se passa pelos rádios, televisões e jornais, o compadre autor da frase citada no alto do comentário de hoje desfila inumeráveis casos de uso indevido do dinheiro público em campanhas eleitorais, responsável pela denominada "representação de resultados" em que se transformaram as casas legislativas e sua conseqüente desaprovação popular. Para ele, o projeto destinado a regulamentar o financiamento público das campanhas nada mais é do que um vergonhoso biombo para ocultar o que, de resto, é conhecido de todos.

A farsa do financmento público nas eleições II

A cada nova eleição o jorro de dinheiro nas campanhas terminou por seu desvirtuamento definitivo. O Ministro Ayres Brito, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, assinala em seu voto no episódio do senador Azeredo que o chamado “caixa dois” é a origem de todos estes males. A sensibilidade popular o demonstrou nas pesquisas seu veemente repúdio a tal proposição presidencial. Por enquanto, agravados pelo nojento espetáculo de Brasília, sobem os índices de repúdio às casas legislativas. Argumentemos pelo absurdo. Aprovado o projeto e feita a alocação de recursos para os partidos disputantes, oferecer-se-á ao país a versão de um pleito imaculado, do qual os representantes eleitos emergiriam ostentando diploma de bom comportamento moral. Uma farsa com tonalidades cômicas e trágicas pelo desvio do dinheiro dos impostos, extorquidos da população pela infernal máquina arrecadadora do Estado para convalescer grotesca mistificação.

A farsa do financiamento público nas eleições III

Desde quando as resistências opostas à implantação do sistema distrital no Brasil superaram a batalha contra a moralidade, pelo qual se teria armado dispositivo capaz de combater com eficiência a corrupção eleitoral, quantos a cada nova eleição conquistam o mandato pelo uso imoderado da pecúnia, espalhando pelo Brasil o vírus dessa doença maldita que contamina impérios e as sociedades. No instante da transformação em lei das regras para financiamento de campanhas políticas, nenhum cidadão poderá mais argüir sua ilegitimidade. Aí então o desastre será mais evidente e a crença na superioridade do regime democrático e dos princípios republicanos passará à condição de letra morta, mero devaneio de nefelibatas. Recentes episódios desnudaram esta verdade inconsútil. Elegem-se bandidos para se locupletar nos cargos públicos. Jamais foram verdadeiros homens públicos, simples gatunos elevados às benesses dos mandatos e cargos públicos. As cenas de Brasília constrangem e causam asco.

A farsa do financiamento público nas eleições IV

Pobre Brasil, onde os piores exemplos partem de suas camadas superiores. Nunca antes neste país a corrupção atingiu níveis tão sórdidos e elevados, envolvendo altas autoridades, passando para os brasileiros a impressão de que vivemos em verdadeiro mar de lama. Uma pesquisa séria e profunda vai encontrar muitas causas e, dentre elas, ganha especial relevo a deficiência da educação, que prepara mal os cidadãos que, mais tarde, representarão o povo nos parlamentos. A cada momento aparecem fórmulas supostamente mágicas para debelar o mal, todas meros arranjos para adiar soluções eficientes e capazes de colocar termo a esta verdadeira mazorca moral em que se transforma o ambiente político e administrativo. O povo tem no próximo ano o instrumento para varrer da vida pública os desonestos, tal como Cristo expulsou a chicotadas os vendilhões do templo.